29 fevereiro 2008

Até já, S.Tomé

Talvez não escreva muito mais sobre S. Tomé. Talvez fique muita coisa por dizer. Talvez muita coisa possa nunca se perceber. S. Tomé é Africa e não é Africa, pelo menos é o que dizem os mais viajados. A mim aqui chegou e tocou.








Vejo-me a viajar nas estradas esburacadas, enfeitadas de corpos esculturalmente reluzentes, negros espelho, do esforço, do trabalho, do calor, do tanto andar, vejo as cores e cores dos tecidos, das frutas, das tábuas das barracas coloridas, dos táxis amarelos, vejo os olhares ao meu encontro esteja onde estiver, dentro do carro, na caixa aberta da carrinha, na bicicleta, na mota, no passeio a seu lado, vejo a distancia e a proximidade, vejo a simplicidade e rudeza, vejo a alegria e a amargura, vejo o seu continuar quando a luz se vai, vejo como se dão e são dados pela natureza, como dela fazem parte com toda a certeza, vejo os sons que vem dos seus cânticos, vejo os risos despertos das crianças esfarrapadas, vejo como tudo se tornou tão natural, tão bonito, tão presente, tão para sempre. Vejo como a pobreza pode ser tão digna, como a tristeza pode ser tão nua, como a ajuda pode estar sempre longe, como a mudança pode ser difícil, como o injusto nos arrepia a pele, como o medo existe e persiste, como o socorro emerge. Despeço-me com um até já, como sempre, e é cá de dentro que ouço “também pertences aqui”.
Cheguei a Viana de noite, foram as luzes da cidade que me receberam, e o ar fresco tocou-me cá por dentro. Mais um regresso a sorrir, mais uma etapa conseguida, mais um pedaço de mim, mais um pedaço de lá.
E um abraço gigante e um mais gigante obrigada às pessoas que encontrei e conheci ai. Aquelas que me receberam com tudo, que confiaram mesmo antes de conhecer, que acreditaram, que me mostraram o que é estar e ser num outro espaço do mundo, que me levaram a conhecer o que eu só queria conhecer com elas, que me foram tão precisas, tão importantes, tão amigas, tão tudo, que me ouviram e me procuraram para ser ouvidas, que me fizeram ser precisa, precisar, viver, crescer, que me fizeram falta, que me fazem falta, que construíram comigo essa casa, a nossa casa, elas, vocês, sabem bem de quanto amor e orgulho se enche o meu coração só de pensar em cada um de vocês. Xi todo meu coração e até já.

Nus



O sermos quem somos, sem adereços, sem máscaras, sem etiquetas de posto profissional, sem degraus, sem dever nada a ninguém, sem esperar nada de especial do outro, somente ser, e aceitar o ser do outro, sem exigir demais, e apresentarmo-nos só assim, e estarmos conscientes disso, é mais um jeitinho de crescimento e de identificação, que cada vez gosto mais de sentir e de deixar fluir. Apreciar cada nada e ver um tudo...
...Jantar com os mais vips da sociedade, ser servida pelo senhor mais media, pedir boleia na estrada, comer espetadas com as mais altas representações, ficar sentada na marginal na conversa com o menino da rua, meter conversa e gargalhadas com as senhoras da fruta, e só ser, e conseguir encontrar essa parte igual, gente, simplesmente, igual. E importante, muito importante, todos nós importantes, realmente importantes, e tão reais.

16 fevereiro 2008

Norte mais norte

Tentando não me desmentir, não me lembro de ter dormido verdadeiramente bem em S. Tomé. Ou pelo menos acordado bem. Principalmente na casa onde fiquei o maior tempo da minha estadia. Custou-me a identificar porquê. Misturava-se o calor húmido, o constante abafanço, as mordidelas de mosquitos, os sonhos tão reais, as confusões cá por dentro,… e o som da vassoura pela casa que quase nunca chegava às 5:30h da manhã, e as vozes de comando a passar a gritaria, “já limpou a casa de banho? Vai despejar o lixo! Vai buscar o pão! Dá de comer às galinha! Esfrega bem essa panela! Já tomou banho? Limpa meu sapato! Vai buscar meu pente! Vai comer sentado? Ainda não bebeu o chá? Logo quando chegar quero essa semente toda limpa!...” e o girar calado, cego, amedrontado de quem nem sequer tinha acordado, nem dormido, nem sabido a diferença entre um e outro. E são crianças.
Crianças que só lhes pude ouvir a voz e ver o sorriso quando cheguei a casa e não estavam os donos da mesma, dos mesmos. Abri o portão e vi uns olhinhos à espreita da porta do anexo dos fundos, e então os olhos brilharam, os sorrisos apareceram e elas correram para me abraçar. Sem dizer nada. Sabia que por mim tinha que sair dali, e como dava tudo para as trazer comigo, e como ao mesmo tempo queria não ter que ir, só para às escondidas, aquele sorriso lindo e prisioneiro poder sacar.
Acordei no sábado com a mesma azáfama da casa. Toda a gente saiu e eu também, apesar de não saber ao certo para onde. Precisava sair, precisava escrever, precisava explodir. A roupa já colada, os olhos carregados, liguei o mp3 e deixei-me conduzir pelo bairro abaixo. O caminho de terra batida, os olhares que se cruzam no passar, os gestos que se transformam num dançar, e então sinto-me a apreciar, sinto-me presente, sinto que vejo, que me vêem, que ando, que estou ali, como tanta gente, sinto-me. Sentei-me numa esplanada para tomar café e pus-me a escrever. Que vontade de desabafo, que bom estado de espaço! Pouco tempo depois recebi a msg “temos carro, toca a despachar”. O Miguel e o Henrique tinham descoberto o truque milagroso para o ressuscitar do jipe, e sem contar, sem planear e nem preparar nada de especial, estávamos os quatro a arrancar para uma investida de descoberta do e no norte.Posso-vos falar da “savana”; da praia das conchas; da lagoa azul; das santolas das Neves; da roça Monforte; do projecto em Diogo Vaz; da estrada linda de braço dado ao mar; das palmeiras cor de laranja; de S. Catarina; do fim da estrada; de como nos rimos, de como nos conhecemos, da conversa ao luar, de como nos demos, de como nos admiramos, de como não nos conhecíamos e simplesmente fomos, sem levar nada connosco, sem sermos ninguém e ao mesmo tempo tudo de especial, e ali construímos tudo, e como vivemos tão bem e aproveitamos tanto a companhia uns dos outros. E foi só deixar ir, mais uma vez, sempre, e chegar a sorrir.

Caminho para cima


Cheguei do sul numa quinta-feira, mesmo à horinha do semanal Happy Hour do Café e Companhia. A viagem para cima foi como mil viagens cá dentro. Vim no mini-bus do Pestana Resort, que todos os dias às 17:00h transporta os funcionários, que por turnos, fazem a sua pausa semanal. Neste dia eu era mesmo a única turista, por muito distraída que andasse. No porto de saída, ainda no ilhéu das rolas, uma embarcação esperava junto ao cais, assim como uma boa dezena de africanos e mais eu. Com todo o tempo do mundo aguardava algum sinal para embarcar ou alguém que mexesse o pé para arredar. Reparei que me olhavam, habitual, mas ninguém me dirigia a palavra e eu no apreciar e no estar, deixei-me assim estar, normal. Até que um senhor numa atitude impaciente atravessa o cais em passo marcado e vai falar com o recepcionista do Resort, e este, inanimado quase humilde, avança no meu sentido e pede-me para embarcar. Relativamente atrapalhada, ponho-me a andar e entro, e atrás de mim, volumosamente, entram as mais de 15 pessoas que esperavam. Esperavam por mim, pela branca, turista, que feita naba estava plantada no porto, tal como os outros, à espera de algum sinal, e afinal eu era o sinal. Minha nossa, que vergonha,…só me deu vontade de rir, e olhei-os nos olhos a pedir mil desculpas e a ver se me via na tal diferença, e eles também sabem que não a há, mas tive que ser mais uma vez a primeira a sair do barco e a primeira a entrar no autocarro. Em tom de gozo, apressada, a cumprir (só para não atrasar quem esperava), mas contrariada por ter de compactuar com aquele procedimento desigual. Cumprimentei o condutor e pedi-lhe se podia ir a seu lado. E foi assim que conheci o Sr. Carlos.


Apresentei-me e ele sorriu, e a partir dali tratou-me sempre por Rita. Todos os dias faz este percurso, duas horas e meia para baixo, duas horas e meia para cima, novamente para baixo, finalmente para cima. 6 da manha, 8 da noite. Instalei-me tipo na caravana, pus os pés fora da janela e preparei-me para viajar.
Fez-me a visita guiada de todo o percurso, de cada povoação, de cada plantação, do especial de cada roça, de cada destroço de habitação, e sempre a sorrir, com um orgulho doce em cada palavra desta sabedoria, e eu a reconhecer que ele me estava a dar o que de mais precioso e verdadeiro têm para oferecer. E perguntou-me sobre mim, sobre os sítios onde tinha estado, onde queria ir, e eu perguntei-lhe dele. E ele sorriu. Nunca tinha saído dali e já nem nos sonhos vi essa possibilidade. O que tinha era aquilo e ali, e passou-mo como o seu mais sagrado. Mas continuou a sorrir,.. doce, servente, sincero, entregue sorriso, e eu chorei por dentro de olhar tamanha tristeza em semelhante beleza.
Fui a última a sair, veio-me entregar mesmo na porta do spot mais social de S. Tomé. Parou autocarro e disse-me para ir pedir um copo, então entrei a correr no café, pousei a mochila num canto, pedi o copo, e voltei junto do Sr. Carlos para uma despedida com vinho de palma. Foi a primeira vez que provei e não gostei. Mas mais um sorriso encaixou no meu.

15 fevereiro 2008

Fotografias

Cada vez é mais difícil fotografar. Nesta viagem a máquina pouca companhia me fez. Talvez pela sorte de encontrar tantas e boas companhias, talvez simplesmente pela imagem que se nega a registar. São imagens sem tempo e sem espaço para serem tiradas. Só pertencem ao aqui e agora, e para nós viajantes, que procuramos a cada momento aqui mais pertencer, não temos direito a tomá-las, e ao faze-lo cada vez mais nos distanciamos, cada vez menos percebemos, cada vez menos vivemosCada olhar mais profundo, cada gesto mais natural de rua (carregar a cabeça com volumosa carga, agachar para arranjar o bebe, parar a olhar, urinar em cada esquina, fazer comida num pequeno fogo, comer em pedaços de lata, descascar fruta, discutir acesamente, vender e querer vender, e o pedir “amiga”, Doce”), e se não o virmos como natural assusta, intimida, afasta, e não vale a pena.
Basta olhar de igual e de natural e os encontros fazem-se, e afinal entendemo-nos, e afinal pertencemos, e temos casa. E passamos nas ruas, e sentamos nos bancos de jardim, e descansamos no murinho junto ao porto de mar, e almoçamos nos sítios do povo, e andamos nos carros deles, e parámos no meio da rua e ficamos a conversar horas, e sentimos que fazemos falta, que eles fazem tanta falta, e rimo-nos com eles e choramos com eles, e chorarmos sozinhas. E este é um grande luxo do viajar.Descobrir, nos sítios por onde andamos, mais uma casa. De cantos e recantos preciosos, com pessoas fantásticas, com momentos sagrados,… e apreciar as coisas boas, e reconhecer as menos e más, e preocuparmo-nos, e cuidarmos, e termos espaço. E a nossa casa poder ser assim, grande, enorme, infinito campo de descobertas, de crescimentos, de frustrações mais ou menos conscientes, de descansos, de cansaços.
S. Tomé
Estradas vergonhosamente esburacadas, empresas e rocas abandonadas, cidades descuidadas, meninos e graúdos viciados (branco dá), calor de abafar, mosquitos de irritar, gente diferente e igual. E tão pequeno S. Tomé. E o difícil de nos encontrarmos com tanto desencontro, e o fácil de nos perdermos com estes encontros.

13 fevereiro 2008

IIheu das Rolas

Este é o apêndice sul de S. Tomé. É mais um recorte de verde abundante em terra cercada de azul, rochedos, falésias, areais pintados de carroceiros e mãe natureza a germinar sem limites. Esta fotografia diz-vos o como ‘cai coco nasce coqueiro”, e a cada passo em todo o espaço.Vim aqui parar por ter sido a oportunidade, de outra forma não se repetiria. O mega Resort Pestana é um sonho muito distante do real neste país, tanto que impressiona, que choca, que magoa. Paguei por uma noite 100 euros, tanto que dava para alimentar uma família (e destas enormes) durante certamente um mês. Tivemos o privilégio de estarmos sozinhos, nós e um casal daqueles estranhos e habituais de encontrar nestes espaços (estrangeiro velho e rico e indígena jovem e consolada), por isso aproveitei cada segundo, sugando todas as possibilidades desta aventura aparentemente mais “segura”. Deitei-me tarde a ver as estrelas, a mergulhar na piscina, a caminhar nos passadiços iluminados,…levantei-me cedo para ver o sol nascer, passear e descobrir os miradouros surpresas, conversar mt com os funcionários do hotel, sempre só eu. Foi tão bom e tão importante a parte do eu, e só por isto valeu esta experiência mais vip. Tempo para sentir o sentir, para só olhar o céu, absorver o real, ouvir e entristecer, e pensar em como é tão injusto, tão cruelmente injusto. Dou-vos como exemplo um destes meninos da animação, aqueles que cantam, dançam, apelam como se a sala estivesse cheia e para quase sempre ninguém,…e inventam alegria, e disfarçam animação, e funcionam mecanicamente como se a cada passo destruíssem o que ainda resta de genuíno, apaga-se o brilho no olho, mata-se o espontâneo, morre-se. O Márcio. Veio da cidade, tem 19 anos e deixou a escola no S. Tomense 10º ano. Trabalha e vive aqui, nesta ilha minúscula e sufocante. Tem um dia de folga por semana e é controlado a cada segundo e milímetro de acção. Ganha 30 euros por mês…. Com este dinheiro ajuda a família e vai à cidade num cansativo dia semanal. E pronto. Foi este moço que nos levou a dar a volta a ilha, foi ele que nos acompanhou discretamente, e foi ele que se abriu de amargura e tristeza e nos levou a caminhadas silenciosas só de respeito, só de ’’meu deus’’. Falou se sonho, falou de vidas, de mortes, do povo, de nós. Também pediu para ouvir,… “Rita, nem sempre que o S. Tomense ri é de alegria, a maior parte das vezes, é só outra forma de chorar”. No ilhéu das rolas existe (ainda) uma povoação minúscula com tendência a desaparecer. Segundo o que consegui entender estão a ser expulsos. Correndo o risco de estar errada…, o grupo pestana tem-se mexido para ser exclusivo daquele ilhéu, então tudo que é nativo e pobre, e pode assustar ou perturbar o turista, e vive em barracas e toma banho no mar, sai, tira-se, mata-se, e já está! Já poucos restam, tiraram-lhes a luz, a agua, e a terra está por um fio. Na noite em que dormi no ilhéu, terminei o jantar e fui caminhar, aproveitando a luz e a noite e o mar ao lado e as estrelas nítidas no céu. Enquanto me afastava do som horrível das colunas de animação (ridiculamente a bombar só para nós) pude perceber uma vozes loucas de mulheres entre sons de percussão, daqueles chamamentos de tribo que não dá para explicar e tive que ir. Mas a escuridão da noite daquele lado e a distancia cada vez mais presente à medida que nos afastamos do resort intimidou. Fui a uma das barracas com luz e pedi companhia até lá. O susto, o medo, o desconhecido, desapareceram mal entrei na rua. Eram 6 raparigas mulheres e 3 rapazes homens, eles tocavam em latões e tábuas e elas cantavam como nunca ouvi e dançavam como não vos posso contar. E era só. Sentei-me no chão e fui completamente e absolutamente levada dali ou somente deixada ali. Nem uma luz, nem uma fogueira, nem uma vela, apenas o luar e o recorte das palmeiras por cima, e as formas das barracas de tábuas improvisadas entre, e de perto as silhuetas dos corpos a explodir e as vozes a sair e a entrar como quem luta para fugir, como quem vive para se prender. Sentei-me no chão e sorri. Não havia luz, não havia fogueira, não havia vela, e este foi o momento mais iluminado ate aquela altura.

Jale


A jalé é dos sítios mais bonitos que já conheci. É na costa sul e este deste pedacinho de terra que é S. Tomé. Alojamo-nos num dos 3 bangalows e únicos albergues que este espaço oferece. Fica longe de tudo, ninguém vive ao pé, não tem luz nem rede, não se ouve nada para além do mar e dos bichos, e tem um amanhecer único, e uma praia de assombro que se faz logo nossa, e um calor demasiadamente entranho e estranho, e um por do sol cor de areia fogo, e só se vê palmeira e palmeira e mar e mar, e sente-se o povo e vive-se o povo e ajuda-se o povo com o aqui vir ficar. Para alem dos clientes só lá fica um guarda, e são três senhores de idade que rodam neste serviço. Todos eles são velhinhos e cheios de histórias para contar. Das roças, das terras de onde vieram, da vida que levaram, das amarguras que passaram, da sobrevivência que os aguenta, da mais pura dedicação ao trabalho que ali é cuidar e servir o melhor possível o cliente e a comunidade de porto alegre, e a maior parte das nossas conversas foram passadas em noite cerrada, nem lanterna, nem vela, só mosquitos, sobre uma das mesas de pedra quase em cima do mar, e tão bom de o imaginar. De manhã e ao jantar, 7h e 18:30h respectivamente vem-nos trazer e preparar o pequeno almoço (mata bicho) e o jantar. Vem de mota e vai rodando pelas famílias da comunidade a preparação destas refeições. Assim todos podem participar e todos podem ganhar. E é simplesmente delicioso. Preparam-nos a mesa e acendem as velas e convidam-nos a entrar, e aí dizem-nos o que nos prepararam, sempre a sorrir, e é de certeza o melhor que podem fazer, e é com tanta dedicação e humildade que nenhum preço poderia chocar. A noite custa 12,5 Euros com o fantástico pequeno almoço incluído, cada refeição é 5 quando é levada de mota e 4 quando vamos faze-la à casa das pessoas como aconteceu nos almoços nos dias em que lá estivemos. E a comunidade, toda ela analfabeta, tenta assim autosustentar-se,...toda a gente deve ter espaço e é educada para participar. Entre a produção e a venda de produtos da terra, a exploração das actividades e dos recursos naturais, a participação no desenvolvimento do turismo,... e este sitio torna-se tão próximo e tão seguro, sente-se que tudo colabora, que todos se preocupam, e é tão imediato e justo o contributo que nós podemos dar e tão perto e cru o obrigada que se sente no ar. Para contrastar com esta realidade e mesmo em frente, para ser mais claro o choque, está o Ilhéu das Rolas e o Pestana Resort, e sobre ele falo-vos mais à frente pois também já lá fui cheirotar.Jalé. Como é possível ainda me surpreender com as praias? Como é possível este mar azul e quente, estes areais sem marcas, este envolvimento gigantesco, esta só natureza. O único lixo e não sei se assim o chamo de bonito que é são as acumulações de cocos e folhas das arvores, e são autenticas obras de arte, e ninguém... Descrevo-vos o imenso verde como se por aqui tivessem pulverizado a porção mágica, e então tudo é gigante,... tudo é muito, é imenso e é enorme,... e nunca mais acaba, ... e tudo se encaixa num manto denso de formas e cores variadas e tão vivas e tão perfeitas. Mais ou menos assim é como o vejo e como o encontro cada vez que olho ou mudo o olhar. Aqui e logo no primeiro dia conhecemos o Miguel e o Henrique. Fomos chamados ao mesmo tempo para jantar e quando chegamos à mesa cuidadosamente preparada vimos, à luz da lamparina, que íamos jantar juntos e então juntos fomos continuando, e hoje, uma semana e dois dias depois ainda continuamos em investidas pela ilha.Um dos amanheceres na Jalé foi com o chamamento do Vado “Rita, querem vir ver tartarugas”. Eram perto das seis da manhã, eu a Bárbara e a Mina (angolana que tínhamos conhecido umas horas antes), levantamo-nos em fomos abrindo os olhos à medida que caminhávamos no areal. As investidas nocturnas à procura das tartarugas tinham nos feito ver e estar com algumas, mas a escuridão da noite e o ar abafado e as lanternas gafas e o cansaço do dia parece que camuflaram o espanto. Aquela névoa do dia a nascer, os sons únicos dessa hora, ainda o sonho que trazíamos da noite (aqui sonha-se sempre), a brisa suave que quase nunca se sente,...e o seguir o Vado e o senhor do balde na mão, e começar a ver de longe aquela massa bruta e o encontrar a tartaruga!! Um dos dias de investida pela cidade tinha visitado exaustivamente o museu nacional, e numa das partes menos interessantes, a das tartarugas, lembro-me de ter pensado como era bom e sorte encontrar uma daquelas maiores e mais raras, as tartaruga ambulância.
Aquela que vimos desovar e descer novamente ao mar talvez tenha subido a ultima vez à mais de 50 anos!!! Tinha mais de uma tonelada, e as medidas já não me lembro. Como é possível não sufocar cá dentro tamanho privilégio? Toquei-lhe, senti-lhe, acompanhei-a na descida e entrei com ela no mar. E senti as lágrimas a formarem quando a vi subir a cabeça já dentro de água como em despedida, uma e outra vez, cada vez mais longe, até daqui a mais 50 anos! E fui ver as trataruguinhas a nascer, e peguei-as nos primeiros passos e fui deixa-las ao mar. E cá dentro levo o mais tanto para vos contar.
Nesse dia ia-me embora com a Barbara mas a Mina seguia para uma noite nas Rolas. Ponderei e ponderei e decidi aproveitar a companhia e fui. Sai da Jalé para voltar. E hoje, e apesar de estar bem em tantos outros lugares da ilha, digo-o com mais vontade ainda.

Já vai ao tempo,

Não escrevo desde que desci. Passaram-se dez dias, e são desses mesmos e do que eles me fizeram que vou tentar agora “ressaltar” (como dizia um senhor entrevistado no canal tão nacional da televisão S. Tomé).
Hoje é dia 11, segunda feira e escrevo-vos da Roça de S. João. Acabei de almoçar deliciosamente e desde este tão imenso, simples e humanamente balcão sobre a baia de Sta. Cruz de Angolares, envolvida toda ela de verde e azul e sons da quinta e humidade do ar, deixo-me nesta tranquilidade e cedo ao retiro do fora e do dentro e começo assim uma nova história. Deixei-vos no domingo, dia 3, feriado nacional em memoria às vitimas antepassadas deste povo desde sempre massacrado. 1953, massacre em Trindade também conhecido por massacre de Batepá, colonos e escravos, ano data início da revolta popular. Eu e a Barbara e mais as duas bicicletas, destino sul, transporte publico amarelo, plano para 3 dias e recursos materiais e financeiros controlados. A primeira aventura começou com a Hyace, o transporte mais económico e mais mágico que esta terra dispõe. Prontos a arrancar já lá estavam 9 adultos, 4 crianças, uma arca frigorifica, 3 bacias de legumes e frutas, sacos e baldes e mais coisas assim. Pedimos informação sobre o próximo horário e disseram-nos que aquele era o único carro, e então nós avançamos com o “acha que ainda podemos ir”? Após uma análise muito rápida e facilmente positiva disseram que iam tentar baixar um dos bancos para as bicicletas encaixarem e foi assim que calmamente iniciamos a nossa viagem. Mágico!!! E como é tão estupidamente fácil pensar Não,.. não há espaço para mais ninguém, Não,.. não vamos nós mais apertados e desconfortáveis, Não,... não nos vamos dar ao trabalho de baixar banco, apertar gente, encaixar crianças, demorar tempo... e aqui um não destes é raro, e parece magia. Demora-se tempo e sorri,.. vai-se sentado no chão ou numa roda das bicicletas e sorri, ... está um calor de derreter e sorri,... empurra, desvia, manobra e sorri, e assim seguimos os p´rai 15 passageiros, perfeitamente encaixadinhos, a cantar, a sorrir, uns a dormir, outros a beber, e nem por um momento surgiu um olhar de cobrança ou má disposição, e olhem que dificilmente poderíamos passar melhor aquela uma hora e meia. Chegamos a meio do caminho entre a cidade e o sul. Angolares. A Hyace amarela ficava aqui. Saímos na praça principal do município, minha nossa, que de rir! Num segundo se juntaram talvez metade dos habitantes da aldeia num consórcio informal organizado para nos ajudar na tarefa do como seguir caminho nós e as nossas duas bicicletas. Domingo não havia mais transporte para o sul. O momento na praça foi de filme, toda a gente se envolveu naquela preocupação e muito mais que nós, que para além daquele espírito confiante do anjinho, naquela altura já tínhamos fome e então fomos almoçar. Para trás ficou aquele espontâneo aglomerado humano e num aceno de obrigada montamos os nossos veículos e passámos para a surpresa seguinte: o almoço.. Aquela barraca azul naquele cercada de verde floresta, o sossego, a comida, a conversa, a cerveja fresquinha, as boleias que se propuseram, o bom astral de férias e de bons encontros estavam por lá, e depois de mais umas investidas ousadas e muito relaxadas à procura de como ir para Porto Alegre, distanciado a 35 km mas uma boa hora de viagem, lá seguimos e eram ai umas quatro e meia da tarde e lá estavam elas a chegar. Viajamos de bicicleta até à praia da Jalé acompanhadas pelo Vado na sua motorizada silenciosa, e esse foi mais um momento movimento cá dentro. A luz alaranjada e a névoa húmida do entardecer do sul, os caminhos limpos no que parecia antiga calçada portuguesa, o verde a comer o caminho, a assaltar o céu, a brotar onde já não parece haver espaço, o ar a bater na cara, o sorriso companheiro da Bárbara, o espanto com tanto, a vigília protectora do vado, e a chegada à praia. A nossa casa.

Dali saímos na quarta feira com a certeza de voltar, e entre o tanto que lá vivemos, digo-vos que quando subi, isto na quinta-feira à noite, vim pasmada do que tinha mudado só pelas oportunidades do deixar e sentir mudar.